quarta-feira, 26 de março de 2014

Minha vida de epiléptico


Epilepsia. Que coisa é essa que é capaz de derrubar uma pessoa e transforma-la numa espécie de “João Ninguém” para a vida em sociedade ?? Pois é, pois é. Isso ai me deu uma tremenda de uma rasteira quando mal e mal eu tinha nascido para o mundo – 4 anos de idade. A convulsão que tive deixou minha família um bocado transtornada. Ninguém entendia o porque daquela criança estar de olhos virados. Ficaram com medo. Levaram-me ao médico. Fui tratado por uns tempos (?) –talvez, alguns meses. Acharam que eu não tinha nada, pois os exames feitos não deram coisa alguma. Suspenderam a medicação aos poucos até que recebi alta. Fazer o que ?? 

Seis anos mais tarde, ela voltou. Voltou com uma ferocidade do tamanho do mundo. Transformou totalmente a minha vida. Deixei de ser gente para num passe de mágica para virar “coisa”. Muitos não me queriam por perto (e ainda alguns parece fugirem de mim). Achavam que eu era uma espécie de retardado. Alguém que não poderia viver sem auxilio de uma pessoa qualquer. De antemão, já me condenaram para a vida, para o mundo. Viver em sociedade, não poderia ser algo para mim. Meu máximo seria viver a margem dela, sem direito a nada, de boca bem fechada, me conformando com tudo. Transformaram-me em carrasco e refém de ...mim mesmo. Estranho ?? Não, não. Alguns de meus próprios familiares – tios, primos, irmã, etc. por vezes me chamavam de louquinho ou coisas bem piores. Depois, se arrependiam, mas de nada adiantava querer voltar para traz porque o tempo não volta atrás e as coisas erradas que aprontaram comigo, fazer o que?  - já estavam encravadas bem no fundo de mim. Passei anos e anos por maus bocados. Cheguei até a ser reprovado na escola por um professor, que gostava de jogar a classe contra mim. Era horrível ter que lidar com quase 40 colegas rindo de mim ao mesmo tempo. Novamente, fazer o quê??  Para piorar ainda mais a minha situação, minha mãe passou a tomar uma posição altamente negativa. Sem querer, me colocou sob uma espécie de “redoma de vidro”. 

 Essa redoma é algo altamente enganoso. Enganoso e perigoso. Ao mesmo tempo em que te dá, te cerceia para a vida em sociedade, te sufoca para o mundo. Você passa a não mais viver a vida. Passa, a bem dizer, vegetar. Aquele ser (minha mãe) que pensava estar dando proteção, no fundo, mais bem no fundo mesmo, estava querendo viver por mim. Ela fez (faz) isso sem perceber. Acha que esta me ajudando, mas... Quer saber uma das coisas mais difíceis de minha vida ? Convencer essa mulher, que apesar dela me querer muito bem (bem até demais), não pode querer respirar, viver ou fazer as coisas por mim. Falar disso a uma mãe requer um bocado de “jogo de cintura”. Ela pode não entender, retrucar com certa violência e/ou incoerência e te fazer sentir-se culpado por aquilo que disse. Esse sentimento de culpa  judia, maltrata,  que não é brincadeira. As culpas são algo de difícil manejo. Minha mãe teve um passado um bocado difícil. Perdeu meu pai quando faltavam 20 dias para o meu nascimento. Por isso, se apegou assim tanto a mim. Sem meu pai que seria a pessoa a me separar dela, vivi praticamente toda minha vida debaixo de sua saia. Foi muito ruim a falta da figura paterna para a troca de experiências.  Meu mundo masculino (?) esteve voltado para ninguém.  Meus tios e avô materno foram os únicos com quem pude contar.

Consegui emprego ainda jovem.  Ótimo. É muito gostoso ter seu próprio dinheirinho, ajudar na casa, fazer com ele quase tudo que se quer. O ruim era agüentar aquele pessoal sádico, que volta e meia telefonava para passar trote, xingar de louco, maluco, etc. Muitos até me mandavam consultar um “Pai de Santo”. Isso fez um mal tão grande, mas tão grande ao meu desenvolvimento. Até hoje, não sei bem o porquê das pessoas adorarem fazer dos outros uma espécie de “pára-raios” para suas frustrações. Já me disseram que fazer isso é próprio do ser humano, mas não me disseram o por quê fazem isso. Sadismo ?? Quem sabe.
Ao completar 18 anos, fui demitido. Disseram que não havia vaga alguma para auxiliar de escritório e como office-boy não poderia ficar na empresa com aquela idade. Fazer o que ??  Sai em busca de um novo emprego. Preenchia as fichas. Quando examinado pelos médicos, dizia que tinha epilepsia. Logo, era rejeitado em todos os lugares. 

Percebe-se com a maior clareza do mundo que ninguém quer um epiléptico por perto. Cansei de procurar emprego e receber os mais diversos tipos de resposta. Experimentei mentir. Fui admitido. Mas, porém, contudo, todavia, quando tive a primeira convulsão, (segundo dia de trabalho) passei a ser visto como um “demônio” ou coisa parecida. Fiquei sabendo que durante a crise, um "montador" de pneus – era uma grande rede de pneus - jogou sobre mim um pneu com roda e tudo. Não me acertou por um triz, mas ...
Fiquei com muito medo de trabalhar num lugar daqueles. Aquela turma me olhava com uma cara de poucos amigos. Nem precisei pedir demissão porque no terceiro dia fui chamado ao departamento pessoal e informado que tinha sido reprovado no contrato de experiência. Reprovado, vá lá, mas reprovado no terceiro dia de trabalho ??  Coisas da vida? Só se for da minha.

Procurei emprego em um banco. Da mesma maneira, menti e fui aprovado. Para ser exato, aprovado como estagiário no Banespa. Tudo ia bem até a “bendita” convulsão  acontecer.  Pediram para mim o que é que eu tinha. Disse que aquilo era epilepsia. Ah, meu Deus do céu.... Para que é que eu fui falar. Os telefonemas dando trotes voltaram a chover aos montes em minha mesa de trabalho. Não dava para trabalhar direito com aquele bando de ... animais enchendo a paciência o dia inteiro. Só tinha uma pessoa que gostava de mim naquele lugar, mas fazer alguma coisa visando o meu bem estar... nada. Agüentei seis meses. Não consegui suportar tamanha humilhação naquele ambiente supostamente de trabalho. Pedi rescisão de contrato. 

Após isso, fui a tantos e tantos lugares e recebi tantas e tantas vezes a resposta não que me cansei de procurar. Estou a anos fora do mercado de trabalho. Cansei dessa procura inútil, que costumeiramente da em coisa alguma.
Dia desses fiquei sabendo que um amigo meu (também epiléptico) foi admitido no H.S.P – E.P.M a convite do Dr. Esper Cavalheiro. Resolvi eu também a ele me dirigir. Quem sabe, contando meu caso, ele poderia me ajudar dando-me um emprego (fosse ele qual fosse). Falei com uma pessoa – acho que era seu secretario, não sei direito - que anotou meu nome em um caderno. Disse para que eu esperasse resposta via telefone. Pois bem. Já se passaram vários meses e resposta que é bom (para sim, ou para não)... nada. Impossível me acharem incompetente; tenho superior incompleto, mas e daí?? O “não” parece ser uma constante em minha vida.

Às vezes sinto o porque muita gente cai numa vida desregrada. Se para quem é supostamente normal, trabalho esta difícil, imagine então para quem tem o problema que eu tenho. Pensei que num local como o H. S. P - E.P.M fossem entender minha difícil posição, mas ... 
Sabe, minha vida amorosa foi também dilacerada pelo fator “trabalho”. HÁ algum tempo conheci uma moça que como eu, também tem epilepsia. Tudo entre nós ia as mil maravilhas. Nossas relações de troca estavam indo de vento em popa. Sabíamos negociar maravilhosamente bem as nossas pequenas diferenças. Para mim era perfeitamente compreensível entender o porque dela ficar brava volta e meia. Afinal de contas, eu também fico assim sem motivo aparente. Quem melhor que um epiléptico para entender outro !! Certo dia pensamos em juntar nossas coisinhas e... passarmos a viver juntinhos. Mas vivermos juntos com que dinheiro ?? Ela, mal ganha para comprar seus remédios e tal qual eu, também depende financeiramente de outras pessoas. Também se cansou de ver as portas fecharem-se a cada vez que procurava emprego; de tão cansada, procurou e conseguiu aposentadoria. Concluiu que para nos não havia saída.  Disse a mim que nossa união estaria fadada ao fracasso. 

Será que ela estava enganada mesmo quando disse isso ? Até hoje quando nos encontramos, ela parece querer fugir de mim. Agora, me explique porque quando trocamos telefonemas, ficamos até duas horas “pendurados” no telefone  feito dois adolescentes enamorados ?? Por uma questão de ética, não coloco aqui até que ponto ela se abre para mim expondo toda sorte de coisas que a perturbam. Melhor, acho que o certo seria dizer o quanto no abrimos um para o outro. Sabe, nos abrimos de uma maneira tão linda, tão bela, tão pura !! Nem parece que somos do tempo onde a regra geral é levar vantagem em tudo ! Alias, ambos odiamos esse ditado. Acho que o coitado do Gerson não pensou que um dia seria tão desprezado pelo que disse. Naquela época e naquelas condições, tudo bem, mas hoje...

O fato é que continuo (e sempre continuarei) a ser um baita de um ombro amigo só que via telefone. Acho que devo mudar meu modo de proceder quando falo com ela. Acho que é esse meu jeito tão “escancarado” de ser deve dar um certo medo na moça. Infelizmente, por telefone a conversa fica muito fria, distante, impessoal. Sem querer acabo me abrindo demais. Sabe, me faz muita falta esse tipo de presença (feminina) em minha vida.

Remédios:

Acho que já tomei quase todos eles.  Seus efeitos colaterais... pelo amor de Deus. Eta coisa mais ruim. Enjôo, constante dor no estômago, barriga, hemorróidas, prisão de ventre, tremores, diplopia, tontura, sono, insônia – (trocar o dia pela noite)- algumas mulheres param de menstruar, enfim, coisas pra lá de medonhas. Alguns medicamentos, apesar de custarem uma nota preta (Trileptal), não conseguem segurar a convulsão.  Para ser mais exato, com essa medicação, passei uns dias com um tremendo enjôo, volta e meia vomitava verde, tinha visão dobrada 20 minutos após tomar o remédio, etc., etc. Fazer o quê ? Me sentia um cara a beira a vida. Meu pobre fígado ...
Sabe, se realmente existir outra vida, nós epilépticos fomos bem ruinzinhos, não acha? Caramba, o que estou pagando nessa... Não acredito nessas coisas, mas...

Sociedade.

Como se pode viver numa sociedade que te quer o mais distante possível ?? Difícil ? Lógico que sim. Impossível, isso não. Sabe, nossa sociedade é um bocado pobre em valores éticos e/ou morais. Não só pobre como também podre. Nela há três tipos de pessoas : as que fazem acontecer, as que perguntam como se faz acontecer e o terceiro e último tipo que é formado por gente que mal e mal pergunta o que é que aconteceu. Estranho, mas é a mais pura realidade – pelo menos a meus olhos.

Um dos meus principais problemas foi não usar as famosas “mascaras” quando se saí para o mundo. Expunha-me a torto e a direito. Muitas pessoas , a par disso, fizeram de mim “gato e sapato”. Tentava inutilmente fazer as pessoas adequarem-se a minha realidade (como se isso fosse possível) e não eu adequar-me à realidade da sociedade na qual vivemos. Até perceber isso, apanhei. Hoje, as coisas não mais são assim. Sempre que alguém, sem motivo algum, tenta me fazer de bobo, na mesma hora retruco com a mesma intensidade ( a famosa lei da física - ação/reação). O indivíduo parece cair em si, passa a me respeitar um pouco mais e com o tempo larga esse estúpido modo de proceder. Estranhamente, passa a ser mal visto pelas próprias pessoas que o cercam.

Graças a Deus, mas graças a Deus mesmo, hoje sou assim (mais vivo, mais cheio de energia, desembaraço, disposição, pique, etc.) graças às psicólogas de meu grupo terapêutico, Dr.a Neide Barroso, Dr.a Maria Helena e Dr.a Regina Silvia. Esses três anjos fizeram de mim uma outra pessoa. Costumo dizer que a cada reunião que temos, elas nos fornecem uma espécie de “remédiozinho” que tomado em doses homeopáticas, da tempo certinho de continuarmos menos deprimidos até a próxima reunião.  E ele faz um bem... Pelo menos me mantém mais vivo nas horas difíceis. Tem mais, essa nossa “micro-sociedada” nos ajuda dando forças para os momentos mais críticos pelos quais passamos quando estamos no mundo.  Explico melhor: tiramos muito proveito das conclusões que chegamos quando estamos neste pequeno grupo e aplicamos esses novos conhecimentos em nosso dia a dia com resultados simplesmente fantásticos.

Consciência:

Sabe doutora Ivete, passei a ser mais humano, a deixar aquela espécie de “posição fetal”, a voltar a vida, depois que tive a Sra. como minha médica. É impressionante a sua maneira de transmitir uma mensagem “por traz das palavras”. Estranho ?. Não. Passei a entender que não poderia estar simplesmente recebendo ordens sem questionar. Acho que, como se diz àquela gíria, cai na real. Geralmente, nos pacientes não fazemos nossa parte. Esperamos de vocês médicos, tudo. Esquecemos de tomar o remédio nas horas exatas, aprontamos das nossas (os famosos testes), sentimos muitas vezes uma tremenda vontade de mandar tudo para... .  Queremos que vocês façam tudo pela gente - quem sabe até tomar remédio !!!. Alguns acham que vocês são uma espécie de Deuses e/ou Semideuses na terra.  Isso é muito ruim. Quer saber o porque ?? Muitos da turma do outro lado dos lençóis, a meu ver, parecem ficar com um ego (ego ou eu ??) do tamanho do universo.!!

Doutoras: IC, NB, MH e RS
muito obrigado, mas muito obrigado mesmo por vocês... existirem.

Manoel Claudio Vieira -  Julho de 2000

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